Este artigo foi publicado no Gazeta do Povo (Curitiba) em 22/05/2011 [1].
Como educador e professor de
ética, tenho me preocupado cada vez mais com o ensino/aprendizagem de certos
conceitos que, quando não assimilados de forma correta, podem confundir os mais
superficiais. São as noções de tolerância, discriminação, verdade e opinião.
Na
universidade me deparo com frequência, pela temática que ensino, com o
enfrentamento em sala de aula. Uma vez ou outra explodem paixões juvenis,
outras vezes escuto de forma indignada frases como: “O sr. está sendo muito
intolerante com as suas opiniões”, “O professor está discriminando uma parcela
da faculdade com as suas verdades”, “Mestre, a verdade é relativa!”, ou reações
parecidas. Confesso que necessito grande dose de autodomínio e de inteligência
emocional para compreender meus pupilos e, em paralelo, manter um diálogo
respeitoso, vivenciando esses próprios conceitos. Acredito, portanto, que possa
ser útil promover a reflexão sobre os temas acima elencados, para não sermos
conduzidos a engodos midiáticos ou para nos prepararmos para futuros debates em
diversos âmbitos educativos.
O
sentido de tolerância que adoto é do filósofo Tomás de Aquino, que criou o
conceito no século XIII: “Tolerar é
permitir a existência de certos males menores para não provocar outros males
maiores e para não impedir certos bens maiores”. Tolerar é permitir de forma bastante justificada certos
males menores, não autorizá-los.
Existe uma diferença notável entre permitir e autorizar. Este último é dar
autoridade a alguém para que faça algo. No nosso caso, seria autorizar o mal e converter,
por um poder arbitrário e pela “magia” da tolerância, o mal em bem. O
autorizador, assim, tornar-se-ia corresponsável pelo mal. O que não seria
ético. É preciso ser consciente de que, quando se é tolerante, o mal continua
sendo mal na perspectiva de quem permite. E que, mesmo sendo tolerante alguma
vez, nem sempre será possível tolerá-lo. Nesses casos é preciso ser
intransigente com o erro e o mal, o que não é intolerância. Ora, numa sociedade
em que a confiança na razão como meio para descobrir a verdade foi aos poucos dando
lugar ao ceticismo, é fácil compreender porque as pessoas se confundem entre o
bem e o mal. E por que essa desconfiança na razão? Parece que os inúmeros conflitos
sociais com os quais a história do século XX e XXI nos tem brindado, quase sempre
por motivos absurdos e irracionais, como razões nacionalistas, de religião, de
domínio tecnológico ou econômico, sejam a sua causa principal.
No
momento em que a força da razão é enfraquecida, e que o julgamento ético vira
uma questão de sentimentos e preferências pessoais – fenômeno chamado pelo
filósofo MacIntyre de emotivismo, em After Virtue – são compreensíveis as
reações explosivas de algumas pessoas quando alguém lhes tenta mostrar, de
forma racional, as diferenças entre o bem e o mal, como aconteceu entre meus
alunos e eu. Eles se sentem como sendo invadidos por uma autoridade despótica,
que se intromete em sua liberdade pessoal, ou pelo menos a cerceia. A sensação
de desrespeito é real, pois falta a participação da razão e da vontade para
moderar e direcionar esses “sequestros” emocionais para a reflexão. Os
conceitos de intransigência e discriminação acabam se confundindo, o que é um
grande erro.
Ser
intransigente é defender a verdade que nos transcende. Significa, pelo menos, manifestar o direito de discordar de alguém
que apresente outra coisa como verdade, e, num diálogo respeitoso, expor uma
argumentação diferente, com fundamentos sólidos e convincentes, de forma que
ambos tentem honestamente vislumbrar um bem que os una. Portanto, uma atitude
bastante distante da violência e da arrogância. Já ser discriminador é algo
bastante diferente. Significa dar um tratamento desigual, seja favorável ou
desfavorável, às pessoas em função das suas características raciais, sociais,
religiosas ou de gênero. É um desrespeito à pessoa humana, quase sempre numa
atitude física ou psicologicamente violenta. Naturalmente, é algo deplorável,
que sempre será preciso combater.
Entretanto, não existe discriminação de ideias e nem de atitudes, somente de
pessoas. Caso contrário, nenhum educador (pai ou professor) jamais poderia
atuar em relação a seus educandos, corrigindo-os, moderando-os ou até
castigando-os. Infelizmente, é exatamente esta mentalidade (corrigir como
discriminar) que aos poucos vai entrando em nossas escolas, com consequências
incalculáveis.
Como
aponta a doutora em filosofia Ana Marta González, “o respeito se dirige ao
homem que eventualmente defende ideias opostas às nossas; a tolerância, às suas
ideias” (“Las paradojas de la tolerância”).
Portanto, não discriminar não significa ter que tolerar as mesmas ideias,
gostos, sentimentos, opções sexuais, ideais políticos ou religiosos. Posso e
devo discordar se penso diferente. Isto é democracia, isto é pluralismo. O
contrário é ditadura, despotismo ou autocracia.
E como conviverão em
paz pessoas que pensam diferente? Como viver a tolerância, em casos como a
eutanásia infantil, o nudismo, o livre exercício de religiões minoritárias? A
resposta é complexa, mas a filósofa espanhola nos orienta: eticamente, com
respeito. Politicamente, com três critérios: buscar a solução em que a maioria possa
se abster; em que o prejuízo que se vá produzir nos outros seja o menor
possível; em que a subsistência da sociedade esteja sempre garantida.
[1] http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1128514&tit=Discriminar-nunca-tolerar-se-possivel