Terminei recentemente a leitura de uma das obras de maior fôlego de Dostoievski, Os Demônios. Um autêntico tratado sobre
o mal com certo tom de denúncia, no qual analisa a implantação subliminar da
mentira social na Rússia no final do século XIX. A riqueza da obra consiste em seu
caráter profético e totalmente aplicável às gerações futuras.
Coincidência ou não, um amigo me convidou recentemente para acompanhá-lo a uma conferência sobre essa mesma obra-prima, proferida por um filósofo de grande prestígio no momento. Era um estudioso muito capaz que demonstrou conhecer a fundo a obra completa do escritor russo. Foi um autêntico clarão, que iluminou não só muitos aspectos que eu não havia captado totalmente no livro, como também que me fez vislumbrar como o mal está muito mais presente em nossa cultura do que podemos imaginar. Neste artigo, pretendo despertar o leitor para este perigo, de modo que possa defender-se com mais cuidado.
Coincidência ou não, um amigo me convidou recentemente para acompanhá-lo a uma conferência sobre essa mesma obra-prima, proferida por um filósofo de grande prestígio no momento. Era um estudioso muito capaz que demonstrou conhecer a fundo a obra completa do escritor russo. Foi um autêntico clarão, que iluminou não só muitos aspectos que eu não havia captado totalmente no livro, como também que me fez vislumbrar como o mal está muito mais presente em nossa cultura do que podemos imaginar. Neste artigo, pretendo despertar o leitor para este perigo, de modo que possa defender-se com mais cuidado.
Segundo o filósofo que mencionei acima, o mal pode
ser definido para Dostoiévski como a incapacidade de uma pessoa entrar em
contato com a verdade e com a realidade. Uma autêntica privação de um poder,
que foi sendo enfraquecido de forma sub-reptícia, sem, contudo, que a vítima se dê conta. Se quisermos exemplificar com a obra em questão, podemos
observar um dos protagonistas principais, Trofímovitch,
o qual, ao mesmo tempo em que procura ser um revolucionário e intelectual, só
mantém tais ideais – como os fatos depois comprovam – em uma imaginação teórica
e doentia. Suas constantes desculpas para o não cumprimento do dever nascem
sempre das circunstâncias, nunca de sua fraqueza ou enorme preguiça. Dostoiévski
conclui: uma pessoa “possessa pelo demônio” não é aquela que rouba grandes
quantias, ou assassina outros de forma escandalosa, mas aquela que se omite
diariamente nas pequenas exigências de suas obrigações familiares ou
profissionais, sem perceber isso...
Que luz interessante para diagnosticar tantos problemas familiares e escolares,
cujas causas nem sempre se identificam!
Outro personagem de destaque é Piotr Stiepanovitch. Ele é o que os filósofos chamam niilista: desiludido, ressentido,
descrente do homem e de Deus, talvez pela experiência de algum grande
sofrimento injusto e incompreensível, vive sem ver sentido na vida e sua
motivação existencial se apoia unicamente na ciência. É um filho do Mal. Acredita
que pode reinventar o mundo e refazer o homem. Este personagem será o grande
inspirador dos futuros “modelos” de homens destruidores da humanidade que a
história depois conheceu no século XX e XXI. Inicia combatendo diversos “dominadores
assassinos e demoníacos sociais” e acaba mais tarde se transformando ele próprio
no assassino e demônio que tentava combater e destruir. Paulatinamente, vai se
convencendo (ou é convencido?) de que terá mais autonomia se idolatrar a
ciência e matar a metafísica. E, aos poucos, vai defender que a racionalidade
só é válida quando se pode medir, calcular, provar, sentir, comparar. Proclama
que todo o resto não passa de tabu, manipulação, dogmatismo e superficialidade.
Como dizíamos anteriormente, o perigo de homens como este é que eles não percebem que, agindo assim, além de
estarem destruindo a própria natureza humana,
estão provocando a abolição do próprio
homem, e portanto a deles também... Que bom seria se esses niilistas
escutassem o conselho de Pascal, um dos maiores cientistas da história: "O
ato supremo da razão está em reconhecer que existe uma infinidade de coisas que
a sobrepassam. No mesmo instante em que a razão reconhece seu limite, ela
o rompe e o supera. É por obra da razão que se produz este reconhecimento que
é, por isso, um ato puramente racional. Devemos, portanto, dizer que estabelece
um limite para a razão e a humilha aquele que não reconhece nela esta
capacidade de transcender-se”.
Outro aspecto fundamental para esses niilistas é a
necessidade de conquistar credibilidade social. Para isso, mais do que com a
busca sincera pela verdade, preocupam-se mais em manipular os demais sobre suas
“crenças científicas”. A fim de atingir tal meta, tomam o que é comum (a
opinião da maioria, muitas vezes
despreparada) como o normal, o natural, o verdadeiro. Agarram-se às
estatísticas da opinião pública e as divulgam aos quatros ventos para que do
consenso se crie uma verdade aparente.
Esquecem o fato de que as demandas sociais nem sempre são justas e promotoras
da dignidade humana. O triste exemplo histórico do nazismo é um desses casos:
uma porcentagem altíssima dos alemães aprovava esse sistema político. Mas
nessas horas, o niilista é determinado: tenta a todo custo “criar” a verdade
através da força midiática e da pressão social. Quantas realidades parecidas
vemos hoje em nossos telejornais, programas de domingo, revistas semanais etc, que
se tornam autênticos anestésicos para consciências errôneas.
Mas, sem dúvida alguma, o aspecto mais perigoso de um
niilista é sua vontade de destruir a relação entre pais e filhos. Ele enxerga
nessa estratégia o caminho mais rápido para romper a transmissão da vida. Em
paralelo, entende também como necessário fragilizar a relação homem-mulher. No
início, vai mostrar que a ciência poderá dominar novas formas de reprodução, de
família, que tornarão o homem mais emancipado, mais feliz. Vai promover
legislações, caminhadas, campanhas que autorizem todo tipo de eugenia,
eutanásia, formas de morrer, com argumentos de modernidade, vanguarda, etc. Sua
maior conquista será fazer com que as mulheres acreditem que a maior desgraça
que lhes poderá acontecer é ser mães... Mais tarde, como sempre acontece quando
se cede à tentação, a própria sociedade perceberá que tratava-se de mais um engodo:
as pessoas sofrerão precocemente com a solidão, não haverá “reposição mínima”
para a sobrevivência da espécie humana, faltará a mão de obra mais elementar
para uma série de serviços essenciais e, no final, é possível que o fim do mundo
chegue até mais cedo do que se costuma imaginar, e de uma forma muito menos
catastrófica e mais sutil, culminando no desaparecimento da civilização humana.
O enfraquecimento da educação faz parte deste plano
diabólico de destruição da relação entre pais e filhos. Para esta visão, não importa
mais que os valores culturais sejam transmitidos. O mais importante é, na
verdade, a sua completa destruição. Para que isto não tenha uma aparência
despótica e violenta, várias teorias “demoníacas” foram nascendo ao longo do
século XIX e XX, de modo a justificar a implosão de todo o processo educativo.
Nesse contexto aparece a teoria do bom selvagem (Rousseau), a de Freud (não se pode
reprimir a espontaneidade nem os impulsos sensitivos da criança, mas somente estimulá-los,
assim como toda a atividade sexual), o pragmatismo autônomo (Dewey), a
valorização do método suplantando o conteúdo, o sentimentalismo educativo e
tantas outras desvirtuações pedagógicas com auréolas de modernas e avançadas,
de forma a que os pais acreditem que seus filhos serão efetivamente mais
felizes frequentando a escola somente para se divertir, socializar-se,
alimentar-se (escola pública), enquanto que os fins últimos da educação, como
potencializar e desenvolver corretamente a liberdade humana, ficam esquecidos.
Mais uma vez, o tempo passa e os resultados deste tipo de aprendizagem
aparecem: pouquíssima aquisição e retenção do conhecimento, desordens afetivas
de todos os tipos, doenças mentais precoces, desarmonias sociais com a falta de
autoridade, deliquências juvenis... Os “demônios” educativos tentarão “cientificamente”
relacionar com presteza esses pífios resultados a determinismos culturais,
sociais, econômicos e a solução mais uma vez é “possessa”: aprovações
automáticas, cotas, progressões, supletivos... e assim um dos fins do “maligno”
vai sendo alcançado: manter o homem na perfeita ignorância e indiferença, com a
falsa promessa de que chegará um dia no qual o homem poderá construir
“socialmente” e “cientificamente” o seu próprio mundo — obviamente um mundo
melhor!
Já ficou claro qual é o mecanismo do Mal e como ele o
utiliza. Através de uma aparente verdade,
sempre prazerosa e sem sofrimento, vai cegando a inteligência humana com a
mentira, com uma promessa de retribuição de um prêmio futuro que nunca chega.
Quando o homem consegue desvendar essa tramoia, as “teias de aranha” do engodo
não o deixam mais libertar-se, e o sofrimento é sempre maior. Aquele que
parecia um “anjo da luz” acaba mostrando no final a sua verdadeira identidade. Como
já dizia o filósofo Carlos Llano, “o que mente debilita seu próprio sentido da
verdade, e então não sabe tratar mais com a realidade, porque é possível
enganar aos demais, mas não a realidade. Atuo bem se estou de acordo com a
realidade. Pelo contrário, se debilito meu órgão veritativo (que é a
inteligência) estrago minhas relações com a realidade e perco a capacidade de
dirigir-me a outras pessoas de forma feliz”.
Podemos concluir, portanto, que diante da experiência
da fraqueza humana, por causa da desunião e falta de sincronismo de suas
potências superiores (inteligência e vontade) com a inferior (afetividade), é
fácil intuir que o homem sofrerá muito mais
se for educado na mentira, como vem ocorrendo nos dias atuais. Que o mal inicialmente terá vantagem se conseguir
implantar uma educação que não busca a verdade sobre o homem e sobre o cosmos, enganando-o
como um mero momento de distração e de diversão, mas depois a dor da ignorância
será maior. Por outro lado, precisamos lembrar que o homem goza de uma
misteriosa capacidade de escolha, chamada liberdade, exercida quando
conscienciosamente busca a verdade. Nem sempre o racionalismo e o cientificismo
desvelarão o porquê de tantas pessoas conseguirem mudar o rumo de suas vidas,
mas é fato que existem tais pessoas. Como já dizia também Pascal, quando
existem razões que nem a própria razão conhece para decidir-se pelo bem e pela
felicidade, isto sempre encherá o homem de esperança para desmascarar a mentira.
Assim foi com a escravidão, o machismo, o nazismo e tantos outros “ismos” que a
nossa história já vivenciou. Que bom saber que existem, como dizia Shakespeare,
“muito mais coisas entre o Céu e a Terra que a nossa vã filosofia”. Por ser
sempre otimista, acredito que essas forças misteriosas sempre vencerão o mal. A
experiência vital de o homem sentir-se numa “estrada de valores”, asfaltada,
cheia de gente que se ama, alegre, com razoável conforto, apesar de ser às
vezes íngreme e cansar um pouco, sempre será mais atrativa do que caminhar num
deserto sem estrada, para lugar nenhum, à noite, com fome, sede, sozinho e
cheio de ódio no coração...