EDUCAR COM LIMITES,
MAS SEM TRAUMAS
Ao nos depararmos nos noticiários
com jovens de classe média abastados que agem de forma cruel e infra-humana,
matando, por exemplo, sua própria família, ou então diante de pais que jogam o
próprio filho recém-nascido no pára-brisa de um carro por raiva, é cada vez
mais comum nos perguntarmos: o que é que está acontecendo com a humanidade?
Como é possível que um ser humano possa chegar a estes níveis de violência e
insensibilidade? O que será que leva essas pessoas a perderem totalmente a
racionalidade e a virarem “bichos do mato”?
Apesar de haver diversas possíveis
respostas para estas indagações – sejam de índole médico-psiquiátrica,
sociológicas, filosóficas, religiosas, educacional, etc – e de que, portanto,
haveria que se pesquisar, caso por caso, para não se cair em generalizações
perigosas e superficiais, acredito que em todas elas possa haver uma grande
parte de culpa na deficiência, desde
a infância, da educação do prazer. Uma deficiência que foi crescendo,
desde os anos 70, paulatinamente, década por década, mas que, atualmente, -
qualquer pai e educador percebem claramente – está já chegando a níveis
bastante preocupantes...
Se observarmos atentamente a figura 1, podemos descobrir o
funcionamento, mais ou menos generalizado, dos mecanismos antropológicos de
qualquer criança, desde os seus primeiros passos até à maturidade. Qualquer
pai, educador, psicólogo, etc, tem experiência de que a dificílima tarefa de educar consiste justamente em
ir fortalecendo, ano a ano, passo a
passo, num grande exercício de paciência, a
inteligência e a vontade do “pimpolho” de modo que consiga que toda a sua
carga afetiva-sentimental, instintiva-passional e os seus sentidos-gostos sejam
moderados e direcionados para as grandes metas da vida. Antes da inversão da
“chaveziinha” (< ? >), conforme a figura, qualquer criança viverá sob o
domínio do prazer sensível e identificará – o que é um dos maiores enganos
deste início de século – felicidade com prazer. Se qualquer pesquisador
educacional perguntar a qualquer adolescente o que lhe torna feliz ou o que ele
identifica como felicidade, descobrirá que para uns será dormir bastante e a
qualquer hora, comer o que lhe der na “telha” e nas melhores praças de
alimentação, divertir-se nos mais diversos recursos audiovisuais que a
indústria eletrônica oferece para todos os gostos, viajar bastante e em todo
feriadão, ir às festas mais badaladas e liberadas da “night”: enfim,
identificará com as alegrias materiais,
que são fugazes, rápidas, não deixam muita coisa no “ser” e, apesar de terem
uma contribuição importante na felicidade, não são nem de longe o mais
importante.
Buscar o prazer e evitar a dor
Noutros
casos, o pesquisador detectará que o jovem adolescente identificará a
felicidade com “fazer o que se gosta e fugir e/ou adiar o que custa”: é a
dinâmica própria da velha doença dos sentimentos desvairados que se chama sentimentalismo. Sentir-se bem todo
mundo gosta e deseja. O problema não está nisso. O problema está em parar nisso: em colocar o fim da vida
nisso, pois, como será possível alcançar os ideais altos a que todo o ser
humano normal anseia ou conseguir almejar uma capacidade séria e forte de compromisso, somente se sentindo bem na
vida? Por fim, outros ainda alegarão que felicidade é ficar na minha “bolha”:
no meu quartinho, na minha caminha, na minha mesinha, com ar condicionado,
frigobar, computador-tv-videogame-DVD, cachorrinho, etc., livre dos perigos da
vida...
Podemos observar, portanto, que toda
a criança, nos primeiros anos de sua vida, é “naturalmente” egoísta e
tremendamente hedonista (prazer pelo
prazer, sem porquês, sem medidas, sem limites).
Como se já não bastasse toda esta
força negativa da própria natureza humana da criança para baixo, vem se
somando, desde os anos 70, uma outra carga negativa que é a força do meio em que toda a criança
vive. É já lugar-comum afirmar a força que exercem hoje os meios de comunicação
– TV, outdoors, internet, filmes, músicas etc. – nas escolhas dos jovens e
adolescentes.
A primazia dos sentimentos
Se fizéssemos uma exploração e
rastreamento histórico-filosóficos – aqui daremos somente umas breves
pinceladas - desde a idade média até ao início do século XX, com muita
facilidade conseguiríamos ir percebendo que o domínio da inteligência e/ou da
vontade sempre foram se revezando na primazia – numas épocas o grande “valor”
social eram ora as conquistas e as guerras ora as grandes descobertas; ora o
heroísmo do além-mar ora o mundo das idéias - mas nunca se deixaram perder ou
rebaixar pelo mundo dos sentimentos e dos afetos. No início do século passado,
influenciados tanto por alguns filósofos que, reagindo a tanto racionalismo e
cientificismo humano, “lançaram no mercado” a supremacia dos sentimentos,
quanto por um rápido desenvolvimento tecnológico, que oferece ao mundo conforto
e prazer jamais imaginados pelos nossos antepassados, a sociedade se “vendeu”
ao prazer... Durante todos estes anos, esta idolatria foi crescendo e ganhando
espaço e, nos dias atuais – com a revolução tecnológica que permitiu a
globalização -, parece que estamos
chegando perto do seu ápice...
O fato é que esta força social é a grande motivação de
muitos pais para trabalharem 12 horas por dia e se matarem irracionalmente para
ganhar muito dinheiro que permita, primeiro “ter” para curtir a vida e poder
mostrar para os outros que “têm”; e depois, oferecer aos filhos aquilo que a
sociedade dita que é felicidade. É a grande responsável para que os pais poupem
sofrimento aos filhos, custe o que custar, ao invés de lhes ensinar - aos
pouquinhos - como enfrentar o sofrimento e dar-lhes
um sentido na hora da dor. É o que está movendo o adolescente a fazer de
tudo para se “sentir” feliz de forma errada e nociva.
Na figura 2, podemos observar o que acontece quando a força negativa
da natureza da criança se soma a essa força social dominante nos dias de hoje.
Qualquer pai ou mãe que analise com profundidade as conseqüências nocivas que gera essa resultante
de forças, só pode e deve ficar, de fato, bastante preocupado. Perceberá
que muitas delas se identificarão com algumas das “chagas” sociais que tanto se
comentam atualmente nas reportagens dos jornais e, quem sabe, se encontram em sua
própria família ou na escola.
Uma criança que identifica
felicidade com prazer, com o tempo, facilmente se tornará um consumista e materialista: só se
“sentirá feliz” se puder ir ao
shopping todos os fins de semana e comprar a 20ª calça para a festa da
amiguinha; terá vergonha de ir ao colégio se o pai não tiver o carro do ano;
fará de “tudo”, se precisar, para conseguir ter mais dinheiro...
Uma criança que é educada na
dinâmica do sentimentalismo – fazer só o que se gosta e fugir de tudo o que
custa – será, em primeiro lugar, uma pessoa fraca
de vontade: não terá capacidade de alcançar os ideais altos que exigem
muita garra e fortaleza e será um inconstante infeliz; não conseguindo
conquistar esses ideais e sendo “discriminado” pela vida, com muita probabilidade
se tornará uma pessoa depressiva – já
a chamam a doença do século XXI! – e imatura, porque não consegue vaga na
faculdade, no mercado de trabalho, não é feliz no namoro, não tem alegria na
vida... Para quem se encontra num estado interior assim, passar para a
violência é um pulinho. A violência da classe média é, na maioria das vezes,
reflexo da própria fraqueza e da falta de amor que encontra na sua família, na
escola, nos amigos. Nas classes menos privilegiadas, além desses desajustes,
existem fatores de complexo de inferioridades, falta de esperança, e de puro
abandono. Acho que já conseguimos responder agora às indagações do início deste
artigo.
Uma pessoa fraca, depressiva e violenta - queira ou não queira – se
tornará uma pessoa solitária, sem
amigos e sem amores.... Fica fácil entender agora por que muitos jovens hoje se
escondem – se alienam, se refugiam – nas drogas
e nas mais diversas modalidades do sexo?
Por que parecem “bichos do mato”? Quantos estudiosos deste tema não trabalham
estas raízes mais profundas do ser humano e ficam apenas na metade do
caminho...
Por mais alarmista que possa parecer este artigo, é uma pena que tenha
que reconhecer que, como consultor educacional e com experiência de mais de 28
anos na área educacional, esta seja uma realidade muito próxima. Em todos os
exemplos anteriores, poderia citar nomes e sobrenomes de inúmeros casos iguais
ou semelhantes.
O que fica fácil concluir, no fim deste artigo, é que é necessário e
urgente investirmos pesado na educação dos nossos jovens. Que é preciso
mostrar-lhes que a felicidade não está no prazer desvairado e irracional, mas
no prazer certo, no lugar certo, na medida certa e com a finalidade certa. Que
para isso é preciso aprender, desde cedo,
a dizer “não” a muitos desejos e impulsos. Que quando são bem explicados os
porquês dos “não”, eles não só não
traumatizam – como já se disse muito por aí – mas os libertam, e no fundo se
está dizendo “sim” para a verdadeira felicidade, para a verdadeira realização,
para os verdadeiros amores.
Que não é muito inteligente buscar um prazer imediato,
irrefletido e animal, que conduza depois a tanta tristeza, depressão e fossa
que duram, às vezes, uns períodos longos, ou até a vida toda.
Está na hora, como mostram as figura 3, de se investir intensamente
nas alegrias da inteligência, dos
valores humanos, da descoberta do sentido da vida, da cultura, das convicções
firmes. Como também chegou o momento de resgatar o papel fundamental que tem,
no equilíbrio das paixões e na harmonia dos sentimentos, a conquista da
vontade, - confira figura 4 - do
amor real e da verdadeira amizade.
Somente assim
será possível darmos às nossas crianças capacidade de enfrentar e superar toda
a pressão interna e externa que sofrem todos os dias; e dar-lhes a
possibilidade de vislumbrar horizontes mais humanos.
João Malheiro
Doutor em Educação pela